Por Tea Frigério
A
Ecologia, como ciência, sensibilidade, espiritualidade não surgiu nos âmbitos
das igrejas, nem da reflexão teológica ou bíblica. Nasceu no meio da sociedade,
fora das igrejas. Alias, elas mantinham uma visão antropocêntrica contraria ao
cuidado da natureza. O próprio sistema patriarcal capitalista sempre pareceu se
legitimar a partir de uma visão do mundo que se convencionou chamar de ‘cultura judeu-cristã’.
Euclides da Cunha nos alerta: “Realmente, a Amazônia é a última página,
ainda a escrever-se, do Gênesis”.
E Fritjof Capra, em seu livro O Ponto de Mutação, afirma com palavras
proféticas: “A nova visão da realidade…
baseia-se na consciência do estado de inter-relações e interdependência
essencial de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e
culturais. Esta nova visão transcende as atuais fronteiras disciplinares e
conceituais”.
O
pensamento ecológico que nasce destes pensadores nos convida a pensar e viver a
vida como uma rede de relações, rede que forma o ecossistema. Pensamento
ecológico que é parte da elaboração de novos paradigmas de pensamento. Entre
estes novos paradigmas está o da hermenêutica bíblica.
O pensamento ecológico tem desafiado a
reler as primeiras páginas do nosso Texto Sagrado. Estamos cientes de que estas
páginas, Gn 1 e 2, são releituras de mitos da criação dos povos entre os quais
vivia o povo de Israel. Hoje, é patrimônio adquirido que os dois relatos são
reflexão de fé a partir de contextos existenciais de lugares e épocas diferentes.
Nós
cristãos reconhecemos, e disto precisamos pedir perdão, que estes textos,
sobretudo Gn 1,26-28, foram lidos e interpretados para legitimar e construção
de uma mitologia do poder, dominação e exploração indiscriminada sobre a
natureza, na civilização ocidental.
Gn
1 e 2, embora escritos em épocas diferentes (VI e X séculos), chegam a nós um
em continuidade do outro. Isto aponta a necessidade de uma leitura própria para
cada texto, mas também a necessidade de perceber que um é o complemento do
outro, um esclarece o outro. Então, se Gn 1,28 traz os verbos kabash = pisar na terra, subjugar, e radah = dominar, por sua vez, Gn 2,15
nos fala que o ser humano deve cultivar = ‘abad
e guardar o solo = shamar.
Cuidar, cultivar o solo para vida se multiplicar e ser fecunda é a vocação
humana inscrita nestes textos.
Parafraseando
Abraham Heschel, podemos dizer: “Não se
pode construir outra imagem do Todo-poderoso além desta: nossa própria vida
como representação de Sua vontade. Homem e mulher, criados à Sua imagem, devem
imitar Sua misericórdia. Ele delegou à humanidade o poder de agir em Seu lugar.
Somos seus representantes quando aliviamos o sofrimento e trazemos alegria.”
O Todo-amoroso nos criou à Sua imagem e semelhança, para sermos no universo a
continuação de Sua presença criadora e fecunda, para cultivar e cuidar da vida.
A
aliança entre ecologia e teologia, para nós da América Latina deve
necessariamente inspirar-se na Teologia da Libertação que nos indica duas
utopias:
1ª A
salvaguarda da Casa Comum.
A
TL nasceu ouvindo o grito do oprimido, tornando-o sujeito da história e lugar a
partir do qual entender melhor Deus como Deus na Vida, a missão de Jesus como
promotor da Vida em abundância e as igrejas como sacramento de libertação
integral.
Mas
não grita somente o empobrecido, gritam as águas, as florestas, os animais, o
ecossistema, a Terra. A Natureza e o Empobrecidos são vítimas da mesma lógica.
Como
o encontro com o pobre nos permitiu uma experiência espiritual originaria, numa
prática e numa reflexão libertadora. Da mesma forma o encontro com a natureza,
a mãe terra, a questão ecológica nos proporcionará uma nova experiência do
Sagrado, a da Divina Ruah o como comunemente falamos o Spiritus Creator.
A
Carta da Terra diz: ‘Estamos diante de um
momento critico da história da terra, numa época em que a humanidade deve
escolher o seu futuro. A escolha é esta: ou formar uma aliança global para
cuidar da Terra e cuidar um dos outros ou arriscar a nossa destruição e a
devastação da diversidade da vida.’
Precisamos
de um novo paradigma que estabeleça uma aliança de paz duradoura com a Terra,
que estabeleça o shalom, ele vem sob o paradigma ecológico. Ele exige um novo olhar sobre a natureza e
que não existe ‘meio ambiente’, mas
um ambiente inteiro, uma grande
comunidade de vida, do qual nós somos membros uns dos outros. Exige superar
a concepção que a Terra é inerte, um baú de recursos ilimitados, mas a
convicção que a Terra é viva.
2ª A
salvaguarda da unidade da Família Humana.
A
utopia urgente é manter a unidade da Família Humana, habitando a mesma Casa
Comum.
Precisamos
dar corpo a esta utopia e resgatar os valores ligados a solidariedade e
compaixão. A solidariedade e a compaixão permitiram aos nossos ancestrais
passar da animalidade à humanidade. Ao saírem coletar alimentos, não comiam
individualmente, como faziam os animais maiores. Antes reuniam os frutos e a
caça, as levavam para o grupo de co-iguais e os repartiam entre todos. Dessa
atitude nasceu a socialidade, a linguagem e a singularidade humana.
Podemos
vislumbrar nisso o sonho de Deus, da Deusa: o Universo, Casa Comum para a
Família Humana, para que todos os seres viventes, todas as formas de vida
possam ter vida e vida em abundância.
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