segunda-feira, 25 de novembro de 2013

BIBLIA E MULHER NA AMAZÔNIA

Fechem suas jovencas que os meus bezerros estão soltos”
“O homem cai e levanta, a mulher cai e se suja”
“Mulher fala três coisas: chô galinha! vem cá menino! Sim senhor!”
“Mulher é para cozinha, cama e criança!”
“Curvas de estrada e de mulher são perigosas”
           

Por Tea Frigerio

Poderia continuar lembrando uma série completa de provérbios que o povo fala e que revelam a mentalidade machista que marcou e marcam relações em nossa sociedade e, sobretudo, na Amazônia. Provérbios que escutei e escuto nos encontros de mulheres. Provérbios contados para achar graça, para ironizar, para confidenciar na cumplicidade uma mentalidade que humilha, e faz sofrer. Houve mulheres que fizeram uma coleta desses provérbios, quando acordei percebi que havia perdido o momento certo de também juntá-los para usá-los em reflexões dos encontros.

“Mulher menstruada não toma banho, não toca em comida, não mexe com flores, não..., não...”
“Mulher menstruada não comunga, não mexe com as coisas do altar, da capela...”
“Cai da rede... está com incomodo... naqueles dias...”

Saber criar o clima e depois só escutar e sentir com as mulheres e como mulher tudo o que foi transmitido e é transmitido, que nega, desvaloriza, é considerado impureza, vergonha... A menstruação, a gravidez, a amamentação, tudo o que se passa no corpo da mulher, que deveria ser experimentado como símbolo de vida, de transmissão da vida é menosprezado, considerado impureza, usado como limite, como meio para denegrir o corpo da mulher. Usado... Usado... Usado...

“Rapariga... puta... vagabunda... prostituta... mulher da rua.... a outra.... Eva... ” “Roubou.... seduziu...enganou... destruiu... “

Cada um, cada uma de nós poderia acrescentar provérbios, ditados, costumes, palavras a estas que me vieram á memória. Palavras que culpabilizam sempre e somente a mulher. Palavras que legitimam uma situação. Palavras que inferiorizam o corpo da mulher. Palavras que falam de dependência, subordinação, menoridade, violência, abusos, negação, exclusão.
E a realidade do mundo patriarcal veio junto com os colonizadores. Idealizar o mundo indígena, exaltar a presença da mulher no mundo indígena, não, pois sem dúvida havia seus limites e sombras. Mas a situação de negação do indígena, do africano foi duplamente a negação da mulher. Negação que foi transmitida ao mundo caboclo. Negação que foi legitimada pelo catolicismo lusitano e, mais tarde romanizada. Negação e legitimação que foi fundamentada nos textos bíblicos.

Então, parece-me importante refazer um caminho de nomeação, desestruturação, reconstrução que aconteceu e está acontecendo na Amazônia.

Nomear

Missionária, cheia de sonhos e projetos, recém-chegada em Abaetetuba participei de dois grandes eventos: O congresso das comunidades; e a semana dos Clubes de mães. No primeiro, a grande maioria homens, coordenadores de comunidades vindos de toda a Prelazia. No segundo, mulheres coordenadoras dos Clubes de mães. No primeiro, o eixo importante foi a formação cristã em função da vida das comunidades. No segundo, o eixo central foi o aprendizado manual das artes femininas.
Naquela época parecia-me certa esta distinção de papéis. Achei simplesmente maravilhosos. Aos poucos entrando e visitando as comunidades espalhadas no interior, a constatação: a vida comunitária no seu dia-a-dia era como hoje é sustentada pelo trabalho fatigoso e de resistência das mulheres. Nos encontros, nos curso a maioria dos participantes homens, pois a "penca" de filhos, os cuidados familiares, na maioria das vezes, impedia a participação da mulher. As que tinham oportunidade de participar, eram ou não casadas que, desapareciam quando casavam ou se juntavam.
Hoje o quadro mudou. O que provocou a mudança?
O começo foi justamente nos Clubes de Mães. O momento formativo proporcionado nos encontros de aprendizado manual se coloriu de nomes e rostos: Sara, Miriam, Débora, Judite, Ester, Maria, Maria Madalena. Esses rostos e esses nomes começaram a se tornar familiares. Nomes, rostos de figura de mulheres bíblicas. Mulheres que se tornaram as heroínas. Mulheres que se tornaram modelo. O que procurávamos juntas eram exemplos de mulheres que orientassem nossas vidas. Exaltávamos os gestos, as virtudes, os atos heróicos. Descobrimos juntas que havia na História da Salvação não somente heróis, mas também heroínas.
A descoberta nos fez procurar as virtudes, as qualidades, as atitudes dessas mulheres levando-nos a uma convicção: se elas conseguiram, por que não nós?
Foi momento de empatia de mulher para mulher. De experiência de mulher que superava o tempo e falava ao coração, à vida de outras mulheres, de outra época, de outro lugar.
Vem-me espontâneo lembrar uma cantiga de ninar que expressa essa cumplicidade que nascia:

“Quando minha mãe me ninava, ela me cantava do amor,
ela me cantava do amor.
Ela me cantava sobre o amor e chorava.
As palavras de amor gravaram em mim.
Desde que carrego o amor em meu coração
não tenho mais sossego
nem durante o dia, nem na noite.”

Cantar do amor, chorar, gravar, carregar, não ter mais sossego. Cumplicidade de mulher para mulher. Cumplicidade entre mãe e filha. Cumplicidade que vence o tempo e deixa desassossegada.
Desassossego que nos fez sair em busca de espaço para imitar os modelos que havíamos descoberto na História da Salvação: ser Sara, Débora, Jael... Ser mulher, ser presença no cotidiano da casa, da comunidade, da sociedade. Não ser presença anônima, mas ter nome. Passar de objeto que quase nem se enxerga, pois o costume, a rotina torna neutro, faz desaparecer, a ser pessoa presente também quando o serviço era dos mais humildes, ser pessoa presente que toma posição, que exige ser vista, escutada.

Desconstruir

Nomear é tornar presente. Reconhecer uma presença é abrir espaço. Presença que ocupa espaço obriga a ver, a escutar.
Isso provocou um levantar da cabeça, um desatar as amarras, um abrir os olhos e descobrir novos horizontes. Mas, como Lucas nos diz: “O chefe da sinagoga, ficou indignado...” (Lc 13,10-17), reações, medos nos chefes da sinagoga, medo também em nós mulheres educadas a estar curvadas, educadas a recuar, educadas a introjetar os papeis que o patriarcalismo nos assinalou.
Mas o desassossego tinha entrado em nós, obrigava-nos a sair em busca, avançar. E, de novo, fomos buscar na bíblia. Fomos perguntar as nossas heroínas: foi fácil para vocês? Seu tempo aceitou suas tomadas de posição? Os homens como reagiram? Qual eram o lugar e o papel da mulher na sociedade e na religião?
Lemos, pesquisamos nos textos bíblicos e fora da bíblia. Percebemos que o patriarcalismo vinha de longe. Descobrimos que o nome de Deus foi usado para legitimar a exclusão, dependência, subordinação da mulher.
Lemos, pesquisamos, refletimos nos confrontamos com outras mulheres. Expressamos nossas dúvidas, perplexidades. Sim, porque ao fazer isso nos encontramos com textos nunca lidos. Ao fazer isso deparamos com interpretações elaboradas para legitimar privilégios. Percebemos que a História do povo de Israel, como toda história, era lida a partir dos opressores, a partir dos homens.
Começamos a suspeitar e voltamos a ler.
Ao lado dos patriarcas havia matriarcas na defesa da vida.
O líder da libertação do Egito foi precedido por mulheres grávidas e parteiras; foi salvo pela mãe e irmã; sua mulher, Séfora, teve influência em seu amadurecimento; quem cantou e dançou a Javé, o Deus Libertador, foi Miriam e as mulheres.
Teve Josué, mas teve Raab; Daví, mas Resfa denunciou sua sede de poder; profetas e profetizas ao lado dos sábios quantas sábias: Rute, Sulamita, Judite, Qoelet...
A famosa "pulga atrás da orelha" picava e aumentava o desassossego. Então me lembro de outro pedacinho da canção de ninar:

“Como são difíceis
os amores sem resposta que já vivi.
A pessoa que morre sem ter amado
não conhece o valor do amor.
Mas eu conheço seu valor.
E esse amor eu carrego dentro de mim.
Desde quando a minha mãe me cantava
sobre o amor.”

Momento difícil: descoberta e desilusão; alegria e tristeza; confiança e desconfiança... oferta, gratuidade, dedicação traída, usada... Amores sem resposta...
Queriam-nos Eva, nos queriam Maria... Ora nos queriam sedutoras... Ora nos queriam castas. Sobre nós descarregavam a culpabilidade... De nós esperavam a redenção carregando uma cruz que não era cruz, pois a cruz é para ressurreição, não para ficar no túmulo.
Indignação! Com indignação a busca de caminhos novos, de presença nova. Com a indignação construir a libertação nossa, de mulheres convictas que realizando nossa saída do cativeiro tiraríamos do cativeiro também os homens, nossos companheiros.
 “Acontecerá naqueles dias - oráculo de Javé - me chamarás meu marido, e não me chamarás mais meu baal” (Os.2,16).
Não senhores e donos, mas companheiros.

Reconstruir

“Esta é ossos dos meus ossos
carne da minha carne
ela se chama mulher
eu me chamo homem”
(Gn.2,23)
“Deus criou a humanidade a sua imagem
a imagem de Deus a criou
macho e fêmea a criou”
(Gn.1,27)
           
Uma nova luz resplandeceu dos textos. Tínhamos encontrado a chave que abria uma porta fechada hermeticamente à muito tempo. Porta que abria horizontes sem limites. Porta aberta que nos tornava adultas superando a minoridade secular. Porta escancarada na liberdade, autonomia, dignidade, responsabilidade.
Começava e continua o tempo da reconstrução. Começava e continua um tempo novo no qual urge ser ousadas. O desafio foi lançado agora é o tempo de recolher o desafio.

Desafio - Sonho
Sonho que rompe
Sonho que supera
Barreira
Preconceitos
Introjeções
Inimizades
Isolamento.
Sonhar juntas
Sonhar ligeiro
Sonhar mutirão.
Sonhar palavras antigas
Sonhar palavras inéditas.
Sonhar palavras silenciadas.
Palavras realidade
Palavras símbolo
Palavras inexpressas.
Palavras que suspeitam
Palavras que nomeiam
Palavras que desconstroem
Palavras que reconstroem.
Palavras que revelam:
Identidade
Igualdade
Alteridade
Reciprocidade
Relação.
Palavras resistência
Palavras organização
Palavras conquistas:
animadora
doadora de saúde e vida
catequista
coordenadora
ministério
evangelizadora
missionária
associação
sindicato
partido
vereadora
prefeita
deputada
senadora
Palavras espaço
Palavras faladas
Palavras escutadas.
Palavra... Acontecimento
Então, companheira
vamos continuar
Sonhar juntas
Sonhar ligeiro
Sonhar mutirão
Continuar a sonhar
Sonhar... Utopia.

                                                                                                          Tea Frigerio




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