“Fechem
suas jovencas que os meus bezerros estão soltos”
“O
homem cai e levanta, a mulher cai e se suja”
“Mulher
fala três coisas: chô galinha! vem cá menino! Sim senhor!”
“Mulher
é para cozinha, cama e criança!”
“Curvas
de estrada e de mulher são perigosas”
Por Tea Frigerio
Poderia
continuar lembrando uma série completa de provérbios que o povo fala e que
revelam a mentalidade machista que marcou e marcam relações em nossa sociedade
e, sobretudo, na Amazônia. Provérbios que escutei e escuto nos encontros de
mulheres. Provérbios contados para achar graça, para ironizar, para
confidenciar na cumplicidade uma mentalidade que humilha, e faz sofrer. Houve
mulheres que fizeram uma coleta desses provérbios, quando acordei percebi que
havia perdido o momento certo de também juntá-los para usá-los em reflexões dos
encontros.
“Mulher
menstruada não toma banho, não toca em comida, não mexe com flores, não...,
não...”
“Mulher
menstruada não comunga, não mexe com as coisas do altar, da capela...”
“Cai
da rede... está com incomodo... naqueles dias...”
Saber
criar o clima e depois só escutar e sentir com as mulheres e como mulher tudo o
que foi transmitido e é transmitido, que nega, desvaloriza, é considerado
impureza, vergonha... A menstruação, a gravidez, a amamentação, tudo o que se
passa no corpo da mulher, que deveria ser experimentado como símbolo de vida,
de transmissão da vida é menosprezado, considerado impureza, usado como limite,
como meio para denegrir o corpo da mulher. Usado... Usado... Usado...
“Rapariga...
puta... vagabunda... prostituta... mulher da rua.... a outra.... Eva... ”
“Roubou.... seduziu...enganou... destruiu... “
Cada
um, cada uma de nós poderia acrescentar provérbios, ditados, costumes, palavras
a estas que me vieram á memória. Palavras que culpabilizam sempre e somente a
mulher. Palavras que legitimam uma situação. Palavras que inferiorizam o corpo
da mulher. Palavras que falam de dependência, subordinação, menoridade,
violência, abusos, negação, exclusão.
E
a realidade do mundo patriarcal veio junto com os colonizadores. Idealizar o
mundo indígena, exaltar a presença da mulher no mundo indígena, não, pois sem
dúvida havia seus limites e sombras. Mas a situação de negação do indígena, do
africano foi duplamente a negação da mulher. Negação que foi transmitida ao
mundo caboclo. Negação que foi legitimada pelo catolicismo lusitano e, mais
tarde romanizada. Negação e legitimação que foi fundamentada nos textos
bíblicos.
Então,
parece-me importante refazer um caminho de nomeação, desestruturação,
reconstrução que aconteceu e está acontecendo na Amazônia.
Nomear
Missionária,
cheia de sonhos e projetos, recém-chegada em Abaetetuba participei de dois
grandes eventos: O congresso das comunidades; e a semana dos Clubes de mães. No
primeiro, a grande maioria homens, coordenadores de comunidades vindos de toda
a Prelazia. No segundo, mulheres coordenadoras dos Clubes de mães. No primeiro,
o eixo importante foi a formação cristã em função da vida das comunidades. No
segundo, o eixo central foi o aprendizado manual das artes femininas.
Naquela
época parecia-me certa esta distinção de papéis. Achei simplesmente
maravilhosos. Aos poucos entrando e visitando as comunidades espalhadas no
interior, a constatação: a vida comunitária no seu dia-a-dia era como hoje é
sustentada pelo trabalho fatigoso e de resistência das mulheres. Nos encontros,
nos curso a maioria dos participantes homens, pois a "penca" de
filhos, os cuidados familiares, na maioria das vezes, impedia a participação da
mulher. As que tinham oportunidade de participar, eram ou não casadas que,
desapareciam quando casavam ou se juntavam.
Hoje
o quadro mudou. O que provocou a mudança?
O
começo foi justamente nos Clubes de Mães. O momento formativo proporcionado nos
encontros de aprendizado manual se coloriu de nomes e rostos: Sara, Miriam, Débora,
Judite, Ester, Maria, Maria Madalena. Esses rostos e esses nomes começaram a se
tornar familiares. Nomes, rostos de figura de mulheres bíblicas. Mulheres que
se tornaram as heroínas. Mulheres que se tornaram modelo. O que procurávamos
juntas eram exemplos de mulheres que orientassem nossas vidas. Exaltávamos os
gestos, as virtudes, os atos heróicos. Descobrimos juntas que havia na História
da Salvação não somente heróis, mas também heroínas.
A
descoberta nos fez procurar as virtudes, as qualidades, as atitudes dessas
mulheres levando-nos a uma convicção: se elas conseguiram, por que não nós?
Foi
momento de empatia de mulher para mulher. De experiência de mulher que superava
o tempo e falava ao coração, à vida de outras mulheres, de outra época, de
outro lugar.
Vem-me
espontâneo lembrar uma cantiga de ninar que expressa essa cumplicidade que
nascia:
“Quando
minha mãe me ninava, ela me cantava do amor,
ela
me cantava do amor.
Ela
me cantava sobre o amor e chorava.
As
palavras de amor gravaram em mim.
Desde
que carrego o amor em meu coração
não
tenho mais sossego
nem
durante o dia, nem na noite.”
Cantar
do amor, chorar, gravar, carregar, não ter mais sossego. Cumplicidade de mulher
para mulher. Cumplicidade entre mãe e filha. Cumplicidade que vence o tempo e
deixa desassossegada.
Desassossego
que nos fez sair em busca de espaço para imitar os modelos que havíamos
descoberto na História da Salvação: ser Sara, Débora, Jael... Ser mulher, ser
presença no cotidiano da casa, da comunidade, da sociedade. Não ser presença
anônima, mas ter nome. Passar de objeto que quase nem se enxerga, pois o
costume, a rotina torna neutro, faz desaparecer, a ser pessoa presente também
quando o serviço era dos mais humildes, ser pessoa presente que toma posição,
que exige ser vista, escutada.
Desconstruir
Nomear
é tornar presente. Reconhecer uma presença é abrir espaço. Presença que ocupa
espaço obriga a ver, a escutar.
Isso
provocou um levantar da cabeça, um desatar as amarras, um abrir os olhos e
descobrir novos horizontes. Mas, como Lucas nos diz: “O chefe da sinagoga, ficou indignado...” (Lc 13,10-17), reações,
medos nos chefes da sinagoga, medo também em nós mulheres educadas a estar
curvadas, educadas a recuar, educadas a introjetar os papeis que o
patriarcalismo nos assinalou.
Mas
o desassossego tinha entrado em nós, obrigava-nos a sair em busca, avançar. E,
de novo, fomos buscar na bíblia. Fomos perguntar as nossas heroínas: foi fácil
para vocês? Seu tempo aceitou suas tomadas de posição? Os homens como reagiram?
Qual eram o lugar e o papel da mulher na sociedade e na religião?
Lemos,
pesquisamos nos textos bíblicos e fora da bíblia. Percebemos que o
patriarcalismo vinha de longe. Descobrimos que o nome de Deus foi usado para
legitimar a exclusão, dependência, subordinação da mulher.
Lemos,
pesquisamos, refletimos nos confrontamos com outras mulheres. Expressamos
nossas dúvidas, perplexidades. Sim, porque ao fazer isso nos encontramos com
textos nunca lidos. Ao fazer isso deparamos com interpretações elaboradas para
legitimar privilégios. Percebemos que a História do povo de Israel, como toda
história, era lida a partir dos opressores, a partir dos homens.
Começamos
a suspeitar e voltamos a ler.
Ao
lado dos patriarcas havia matriarcas na defesa da vida.
O
líder da libertação do Egito foi precedido por mulheres grávidas e parteiras;
foi salvo pela mãe e irmã; sua mulher, Séfora, teve influência em seu
amadurecimento; quem cantou e dançou a Javé, o Deus Libertador, foi Miriam e as
mulheres.
Teve
Josué, mas teve Raab; Daví, mas Resfa denunciou sua sede de poder; profetas e profetizas
ao lado dos sábios quantas sábias: Rute, Sulamita, Judite, Qoelet...
A
famosa "pulga atrás da orelha" picava e aumentava o desassossego.
Então me lembro de outro pedacinho da canção de ninar:
“Como
são difíceis
os
amores sem resposta que já vivi.
A
pessoa que morre sem ter amado
não
conhece o valor do amor.
Mas
eu conheço seu valor.
E
esse amor eu carrego dentro de mim.
Desde
quando a minha mãe me cantava
sobre
o amor.”
Momento
difícil: descoberta e desilusão; alegria e tristeza; confiança e
desconfiança... oferta, gratuidade, dedicação traída, usada... Amores sem
resposta...
Queriam-nos
Eva, nos queriam Maria... Ora nos queriam sedutoras... Ora nos queriam castas.
Sobre nós descarregavam a culpabilidade... De nós esperavam a redenção
carregando uma cruz que não era cruz, pois a cruz é para ressurreição, não para
ficar no túmulo.
Indignação!
Com indignação a busca de caminhos novos, de presença nova. Com a indignação
construir a libertação nossa, de mulheres convictas que realizando nossa saída
do cativeiro tiraríamos do cativeiro também os homens, nossos companheiros.
“Acontecerá naqueles dias - oráculo de Javé -
me chamarás meu marido, e não me chamarás mais meu baal” (Os.2,16).
Não
senhores e donos, mas companheiros.
Reconstruir
“Esta
é ossos dos meus ossos
carne
da minha carne
ela
se chama mulher
eu me
chamo homem”
(Gn.2,23)
“Deus
criou a humanidade a sua imagem
a
imagem de Deus a criou
macho
e fêmea a criou”
(Gn.1,27)
Uma
nova luz resplandeceu dos textos. Tínhamos encontrado a chave que abria uma
porta fechada hermeticamente à muito tempo. Porta que abria horizontes sem
limites. Porta aberta que nos tornava adultas superando a minoridade secular.
Porta escancarada na liberdade, autonomia, dignidade, responsabilidade.
Começava
e continua o tempo da reconstrução. Começava e continua um tempo novo no qual
urge ser ousadas. O desafio foi lançado agora é o tempo de recolher o desafio.
Desafio
- Sonho
Sonho
que rompe
Sonho
que supera
Barreira
Preconceitos
Introjeções
Inimizades
Isolamento.
Sonhar
juntas
Sonhar
ligeiro
Sonhar
mutirão.
Sonhar
palavras antigas
Sonhar
palavras inéditas.
Sonhar
palavras silenciadas.
Palavras
realidade
Palavras
símbolo
Palavras
inexpressas.
Palavras
que suspeitam
Palavras
que nomeiam
Palavras
que desconstroem
Palavras
que reconstroem.
Palavras
que revelam:
Identidade
Igualdade
Alteridade
Reciprocidade
Relação.
Palavras
resistência
Palavras
organização
Palavras
conquistas:
animadora
doadora
de saúde e vida
catequista
coordenadora
ministério
evangelizadora
missionária
associação
sindicato
partido
vereadora
prefeita
deputada
senadora
Palavras
espaço
Palavras
faladas
Palavras
escutadas.
Palavra...
Acontecimento
Então,
companheira
vamos
continuar
Sonhar
juntas
Sonhar
ligeiro
Sonhar
mutirão
Continuar
a sonhar
Sonhar...
Utopia.
Tea
Frigerio
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