quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A quem queremos servir?




“Ninguém pode servir a dois senhores:
ou odiará a um e amará o outro,
ou se apegará a um e desprezará o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro."

Mateus 6,24


Por Tea Frigério

A festa de Cristo rei conclui o ano litúrgico. Nesta semana que nos leva ao primeiro domingo de advento senti a necessidade de retomar a reflexão: a quem queremos servir? E assim retomei a reflexão feita sobre Mateus 6,24.
É importante fare alcune osservazioni iniziali: 1º Mateus 6,24 tem seu paralelo em Lucas 16,13. 2ºO texto original em grego não tem o vocábulo ‘dinheiro’, mas ‘Mamona’. Mamon, era o nome próprio de um dos deuses do Oriente Médio, precisamente da Síria. Representava o culto ao dinheiro como expressão de riqueza. Seu culto tinha como objetivo favorecer o enriquecimento de seus adoradores, a manutenção e reprodução do sistema comercial monetário. 3º Seu contexto literário é o Discurso da Montanha (Mt 5-7), marcado pela palavra justiça presente no Evangelho de Mateus 7 vezes (Mt 3,15; 5,5; 5,10; 5,20; 6,1; 6,33; 21,31). O paralelo em Lc 16,13 também é no contexto de justiça (ver Lc 16,1-33).Mateus e Lucas recordam às suas comunidades e a nós que estas palavras de Jesus só podem ser compreendidas num contexto de justiça. Jesus e as primeiras comunidades viviam numa realidade subordinada ao domínio do imperio romano. Manter os valores de sua tradição cultural era um desafio, pois forte era influência dos costumes propagados.Sociedade, baseada na relação: senhor – escravo, como estrutura produtiva econômica. Juntamente havia outra ainda mais abrangente, chamada relação clientelista: patrono – cliente; relação que mantinha dependência e cumplicidade social. Nesta estrutura o dinheiro era imprescindível: a riqueza era status. A força coercitiva do exército garantia o caráter centralizador da economia e do sistema jurídico de cobrança dos tributos.Jesus de Nazaré, pequeno artesão (Mc 3,6), viveu no mundo da Galileia, ligado à realidade camponesa, mas conhecia profundamente a relação senhor - escravo. Nas aldeias se vivia precariamente uma economia baseada na tradição bíblica tribal fundada na subsistência familiar e na autonomia produtiva. A dominação imperial e o perigo de se tornar escravos por dividas eram realidade cotidiana. Jesus ao falar de pobres – humilhados – que choram – tem fome e sede está retratando a realidade concreta que experimentou, assim como o fazem as comunidades de Mateus e Lucas.Que caminho Jesus e as comunidades de Mateus e Lucas apontam para uma economia marcada pelos ethos = ética que tenha Deus como Senhor e não Mamona?
Ser Misericordioso = coração voltado para os últimos, os míseros cuja vida é ameaçada (Ex 3,7-14; 34,6-7; Lc 4,17-21; Mt 8 e 9). Concretamente uma economia que coloca no centro a pessoa e não o lucro. Como nos apontam o texto Mt 20,1-15 e o texto de Lc 19,1-10.
Ter o coração puro = ter o mesmo olhar de Deus... não cobiçarás... dá-nos o pão de cada dia... (Ex 20,17; Mt 6,19 até 7,34). O salmista se interroga: “quem pode subir a montanha do Senhor e estar na sua presença?” Ele mesmo encontra a resposta: “quem tem coração puro, mãos inocentes e pratica ações de justiça” (Sl 24,3-6).
Promover a paz = plenitude de vida onde a paz e o direito se abraçam com a justiça (Sl 85,11-14). A paz cósmica de Deus na qual todas as coisas e as pessoas estão em relação de harmonia entre si e com o seu Criador. A paz deve acontecer na oikia (casa), na oikonomia (economia), na oikoumene (universal), na oikologia (universo). O shalom, a vida plena poderá acontecer quando a organização econômica tornará o universo casa onde todos os seres vivos possam ser acolhidos, viver em plenitude de vida.
Ser perseguido por causa da justiça = “Igreja, o que falas do teu futuro? Renunciarás aos meios de poder, as alianças com o poder político e econômico? Igreja abandonarás os privilégios, renunciarás a capitalizar? Igreja, vai te tornar comunidade universal de partilha e amizade para toda humanidade? Igreja, vai te tornar povo das bem-aventuranças sem outra segurança senão Cristo, povo pobre, contemplativo, criador de paz, portador de felicidade e de festa libertadora para humanidade, aceitando o risco de ser perseguida por causa da justiça”. (Frère Roger, abade de Taizé).



“Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro."

E nós a quem queremos servir? De quem queremos ser discípulos, discípulas?



segunda-feira, 25 de novembro de 2013

BIBLIA E MULHER NA AMAZÔNIA

Fechem suas jovencas que os meus bezerros estão soltos”
“O homem cai e levanta, a mulher cai e se suja”
“Mulher fala três coisas: chô galinha! vem cá menino! Sim senhor!”
“Mulher é para cozinha, cama e criança!”
“Curvas de estrada e de mulher são perigosas”
           

Por Tea Frigerio

Poderia continuar lembrando uma série completa de provérbios que o povo fala e que revelam a mentalidade machista que marcou e marcam relações em nossa sociedade e, sobretudo, na Amazônia. Provérbios que escutei e escuto nos encontros de mulheres. Provérbios contados para achar graça, para ironizar, para confidenciar na cumplicidade uma mentalidade que humilha, e faz sofrer. Houve mulheres que fizeram uma coleta desses provérbios, quando acordei percebi que havia perdido o momento certo de também juntá-los para usá-los em reflexões dos encontros.

“Mulher menstruada não toma banho, não toca em comida, não mexe com flores, não..., não...”
“Mulher menstruada não comunga, não mexe com as coisas do altar, da capela...”
“Cai da rede... está com incomodo... naqueles dias...”

Saber criar o clima e depois só escutar e sentir com as mulheres e como mulher tudo o que foi transmitido e é transmitido, que nega, desvaloriza, é considerado impureza, vergonha... A menstruação, a gravidez, a amamentação, tudo o que se passa no corpo da mulher, que deveria ser experimentado como símbolo de vida, de transmissão da vida é menosprezado, considerado impureza, usado como limite, como meio para denegrir o corpo da mulher. Usado... Usado... Usado...

“Rapariga... puta... vagabunda... prostituta... mulher da rua.... a outra.... Eva... ” “Roubou.... seduziu...enganou... destruiu... “

Cada um, cada uma de nós poderia acrescentar provérbios, ditados, costumes, palavras a estas que me vieram á memória. Palavras que culpabilizam sempre e somente a mulher. Palavras que legitimam uma situação. Palavras que inferiorizam o corpo da mulher. Palavras que falam de dependência, subordinação, menoridade, violência, abusos, negação, exclusão.
E a realidade do mundo patriarcal veio junto com os colonizadores. Idealizar o mundo indígena, exaltar a presença da mulher no mundo indígena, não, pois sem dúvida havia seus limites e sombras. Mas a situação de negação do indígena, do africano foi duplamente a negação da mulher. Negação que foi transmitida ao mundo caboclo. Negação que foi legitimada pelo catolicismo lusitano e, mais tarde romanizada. Negação e legitimação que foi fundamentada nos textos bíblicos.

Então, parece-me importante refazer um caminho de nomeação, desestruturação, reconstrução que aconteceu e está acontecendo na Amazônia.

Nomear

Missionária, cheia de sonhos e projetos, recém-chegada em Abaetetuba participei de dois grandes eventos: O congresso das comunidades; e a semana dos Clubes de mães. No primeiro, a grande maioria homens, coordenadores de comunidades vindos de toda a Prelazia. No segundo, mulheres coordenadoras dos Clubes de mães. No primeiro, o eixo importante foi a formação cristã em função da vida das comunidades. No segundo, o eixo central foi o aprendizado manual das artes femininas.
Naquela época parecia-me certa esta distinção de papéis. Achei simplesmente maravilhosos. Aos poucos entrando e visitando as comunidades espalhadas no interior, a constatação: a vida comunitária no seu dia-a-dia era como hoje é sustentada pelo trabalho fatigoso e de resistência das mulheres. Nos encontros, nos curso a maioria dos participantes homens, pois a "penca" de filhos, os cuidados familiares, na maioria das vezes, impedia a participação da mulher. As que tinham oportunidade de participar, eram ou não casadas que, desapareciam quando casavam ou se juntavam.
Hoje o quadro mudou. O que provocou a mudança?
O começo foi justamente nos Clubes de Mães. O momento formativo proporcionado nos encontros de aprendizado manual se coloriu de nomes e rostos: Sara, Miriam, Débora, Judite, Ester, Maria, Maria Madalena. Esses rostos e esses nomes começaram a se tornar familiares. Nomes, rostos de figura de mulheres bíblicas. Mulheres que se tornaram as heroínas. Mulheres que se tornaram modelo. O que procurávamos juntas eram exemplos de mulheres que orientassem nossas vidas. Exaltávamos os gestos, as virtudes, os atos heróicos. Descobrimos juntas que havia na História da Salvação não somente heróis, mas também heroínas.
A descoberta nos fez procurar as virtudes, as qualidades, as atitudes dessas mulheres levando-nos a uma convicção: se elas conseguiram, por que não nós?
Foi momento de empatia de mulher para mulher. De experiência de mulher que superava o tempo e falava ao coração, à vida de outras mulheres, de outra época, de outro lugar.
Vem-me espontâneo lembrar uma cantiga de ninar que expressa essa cumplicidade que nascia:

“Quando minha mãe me ninava, ela me cantava do amor,
ela me cantava do amor.
Ela me cantava sobre o amor e chorava.
As palavras de amor gravaram em mim.
Desde que carrego o amor em meu coração
não tenho mais sossego
nem durante o dia, nem na noite.”

Cantar do amor, chorar, gravar, carregar, não ter mais sossego. Cumplicidade de mulher para mulher. Cumplicidade entre mãe e filha. Cumplicidade que vence o tempo e deixa desassossegada.
Desassossego que nos fez sair em busca de espaço para imitar os modelos que havíamos descoberto na História da Salvação: ser Sara, Débora, Jael... Ser mulher, ser presença no cotidiano da casa, da comunidade, da sociedade. Não ser presença anônima, mas ter nome. Passar de objeto que quase nem se enxerga, pois o costume, a rotina torna neutro, faz desaparecer, a ser pessoa presente também quando o serviço era dos mais humildes, ser pessoa presente que toma posição, que exige ser vista, escutada.

Desconstruir

Nomear é tornar presente. Reconhecer uma presença é abrir espaço. Presença que ocupa espaço obriga a ver, a escutar.
Isso provocou um levantar da cabeça, um desatar as amarras, um abrir os olhos e descobrir novos horizontes. Mas, como Lucas nos diz: “O chefe da sinagoga, ficou indignado...” (Lc 13,10-17), reações, medos nos chefes da sinagoga, medo também em nós mulheres educadas a estar curvadas, educadas a recuar, educadas a introjetar os papeis que o patriarcalismo nos assinalou.
Mas o desassossego tinha entrado em nós, obrigava-nos a sair em busca, avançar. E, de novo, fomos buscar na bíblia. Fomos perguntar as nossas heroínas: foi fácil para vocês? Seu tempo aceitou suas tomadas de posição? Os homens como reagiram? Qual eram o lugar e o papel da mulher na sociedade e na religião?
Lemos, pesquisamos nos textos bíblicos e fora da bíblia. Percebemos que o patriarcalismo vinha de longe. Descobrimos que o nome de Deus foi usado para legitimar a exclusão, dependência, subordinação da mulher.
Lemos, pesquisamos, refletimos nos confrontamos com outras mulheres. Expressamos nossas dúvidas, perplexidades. Sim, porque ao fazer isso nos encontramos com textos nunca lidos. Ao fazer isso deparamos com interpretações elaboradas para legitimar privilégios. Percebemos que a História do povo de Israel, como toda história, era lida a partir dos opressores, a partir dos homens.
Começamos a suspeitar e voltamos a ler.
Ao lado dos patriarcas havia matriarcas na defesa da vida.
O líder da libertação do Egito foi precedido por mulheres grávidas e parteiras; foi salvo pela mãe e irmã; sua mulher, Séfora, teve influência em seu amadurecimento; quem cantou e dançou a Javé, o Deus Libertador, foi Miriam e as mulheres.
Teve Josué, mas teve Raab; Daví, mas Resfa denunciou sua sede de poder; profetas e profetizas ao lado dos sábios quantas sábias: Rute, Sulamita, Judite, Qoelet...
A famosa "pulga atrás da orelha" picava e aumentava o desassossego. Então me lembro de outro pedacinho da canção de ninar:

“Como são difíceis
os amores sem resposta que já vivi.
A pessoa que morre sem ter amado
não conhece o valor do amor.
Mas eu conheço seu valor.
E esse amor eu carrego dentro de mim.
Desde quando a minha mãe me cantava
sobre o amor.”

Momento difícil: descoberta e desilusão; alegria e tristeza; confiança e desconfiança... oferta, gratuidade, dedicação traída, usada... Amores sem resposta...
Queriam-nos Eva, nos queriam Maria... Ora nos queriam sedutoras... Ora nos queriam castas. Sobre nós descarregavam a culpabilidade... De nós esperavam a redenção carregando uma cruz que não era cruz, pois a cruz é para ressurreição, não para ficar no túmulo.
Indignação! Com indignação a busca de caminhos novos, de presença nova. Com a indignação construir a libertação nossa, de mulheres convictas que realizando nossa saída do cativeiro tiraríamos do cativeiro também os homens, nossos companheiros.
 “Acontecerá naqueles dias - oráculo de Javé - me chamarás meu marido, e não me chamarás mais meu baal” (Os.2,16).
Não senhores e donos, mas companheiros.

Reconstruir

“Esta é ossos dos meus ossos
carne da minha carne
ela se chama mulher
eu me chamo homem”
(Gn.2,23)
“Deus criou a humanidade a sua imagem
a imagem de Deus a criou
macho e fêmea a criou”
(Gn.1,27)
           
Uma nova luz resplandeceu dos textos. Tínhamos encontrado a chave que abria uma porta fechada hermeticamente à muito tempo. Porta que abria horizontes sem limites. Porta aberta que nos tornava adultas superando a minoridade secular. Porta escancarada na liberdade, autonomia, dignidade, responsabilidade.
Começava e continua o tempo da reconstrução. Começava e continua um tempo novo no qual urge ser ousadas. O desafio foi lançado agora é o tempo de recolher o desafio.

Desafio - Sonho
Sonho que rompe
Sonho que supera
Barreira
Preconceitos
Introjeções
Inimizades
Isolamento.
Sonhar juntas
Sonhar ligeiro
Sonhar mutirão.
Sonhar palavras antigas
Sonhar palavras inéditas.
Sonhar palavras silenciadas.
Palavras realidade
Palavras símbolo
Palavras inexpressas.
Palavras que suspeitam
Palavras que nomeiam
Palavras que desconstroem
Palavras que reconstroem.
Palavras que revelam:
Identidade
Igualdade
Alteridade
Reciprocidade
Relação.
Palavras resistência
Palavras organização
Palavras conquistas:
animadora
doadora de saúde e vida
catequista
coordenadora
ministério
evangelizadora
missionária
associação
sindicato
partido
vereadora
prefeita
deputada
senadora
Palavras espaço
Palavras faladas
Palavras escutadas.
Palavra... Acontecimento
Então, companheira
vamos continuar
Sonhar juntas
Sonhar ligeiro
Sonhar mutirão
Continuar a sonhar
Sonhar... Utopia.

                                                                                                          Tea Frigerio




segunda-feira, 18 de novembro de 2013

RECORDAR – DENUNCIAR – RESISTIR – RECRIAR.

A CRB Nacional em Brasília nos dias 15 – 17 de novembro 2013 realizou o IV Encontro Nacional da Rede um Grito pela Vida com o seguinte tema: “Enfrentar o Tráfico de Pessoas é nosso Compromisso”.

A seguir partilhamos as palavras com que Tea Frigério, assessora do CEBI Pará apresentou sua contribuição no Livro “Um grito pela Vida” cujo tema é: RECORDAR – DENUNCIAR – RESISTIR – RECRIAR.

O que me guiou neste escrito primeiramente foi o método da Hermenêutica Feminista Libertadora da Bíblia, que podemos visualizar nas palavras: VIDA – INTERAGIR – SUSPEITAR – DESCONSTRUIR – RECONSTRUIR.O texto bíblico é um tecido, cujos fios que tecem a trama são corpos, a vida. Isso faz do texto o lugar do encontro de corpos, corpos de ontem, corpos de hoje. Os corpos de ontem, a vida de ontem interage com os corpos a vida de hoje. São os corpos de hoje, a vida de hoje que interroga, dialoga com os corpos, a vida de ontem.
O texto bíblico é marcadamente patriarcal, na sua escrita, na sua interpretação. Essa constatação nos leva a suspeitar da leitura que hoje fazemos da historia, de seus acontecimentos, suspeitar da leitura que fomos induzidas a fazer no passado, da leitura que foi e é feita do texto bíblico.
Suspeitar para desconstruir uma historia que anulou o corpo das mulheres. Anulou não dando nome, é por isso que no meu escrito toda mulher tem nome. Nome que dei a elas, nome que vocês podem dar a elas. Dar o nome é devolver a vida que lhe foi negada. Muitas vezes uma vida barateada, comercializada, vendida, usada e abusada aos interesses do patriarcado, do kyriarcado. Corpos e vidas negadas, corpos e vida silenciadas, emudecidas.
Na desconstrução devolver aos corpos vida e palavras. No romance a Tenda Vermelha de Anita Diamant, no Prologo encontramos estas palavras: “Nós nos perdemos de vista por um tempo longo demais. Meu nome nada significa para vocês. Minha lembrança hoje é pó.” É um romance, mas a autora dá nome e voz a uma mulher que como ela afirma: “Não é culpa sua. Nem minha. Os elos da corrente que ligam mãe e filha foram rompidos, por isso a palavra passou à guarda dos homens, que não tinham como saber. Por isso, tornei-me uma simples anotação à margem do papel, e minha historia um breve desvio entre a historia de meu pai, Jacó, e a famosa crônica de José meu irmão. Nas raras ocasiões que lembraram de mim foi sempre como vitima.”
Escutar esta voz nos convida a desconstruir, devolver a estes corpos, vez e voz, nos aproximar para que nos ajudem e ler, a desconstruir uma historia escrita por homens, homens expressão do patriarcado, do kyriarcado. Desconstruir não para criar escombros o vitimismo, mas olhar a realidade e enxergar nela a reconstrução.
Reconstruir para no encontro RECORDAR DENUNCIAR – RESISTIR – RECRIAR.
É isso que me motiva Dinah nos dizer: “Havia muito mais o que contar. Se me tivessem pedido para falar, eu teria começado com a historia da geração que me criou que é o único ponto de onde se pode começar. Se você quiser compreender qualquer mulher, precisa perguntar sobre a mãe dela e depois escutar com atenção o que é dito.”
Ao escutar sua voz, ao lhe dar um nome, vocês podem dizer é um romance, mas volto a dizer ao lhe dar um nome, ao escutar sua voz podemos desconstruir uma historia narrada a partir de interesses patriarcais. Ao dar um nome, visualizar seu corpo, escutar sua voz podemos intuir e reconstruir sua historia e seu potencial libertador. Libertação que está presente em manter viva a memoria recordando, denunciando, resistindo para recriar um caminho libertador.
Safira, a mulher de Ló, testemunha: “Até minha memória foi roubada! Quem escreveu a historia disse que fui castigada por desobedecer.
Não! Quis virar estatua para não permitir esquecer! Não esquecer uma noite de horror e traição!”.
Resfa, no seu silencio grita ainda hoje: “Meu corpo de mulher, concubina, mãe estava lá. Tiveram que levar a noticia ao rei Davi... Tiveram que escrever minha historia, meu corpo estava lá, passou de boca em boca, Davi teve que intervir.Meu corpo estava lá gritando, penetrando nos ouvidos de quem queria ouvir e também de quem não queria ouvir, naquele tempo, hoje ...”
Leha, a filha de Jefté nos provoca: “A virgem chorou pela inutilidade de sua vida. Seu choro não foi inútil, foi resistência. Sua lamentação se tornou para mulheres uma tradição: cada ano se empoderar para contestar, criticar, denunciar os inocentes que silenciosamente são mortos pelas estruturas de opressão, do poder, do lucro. Não poderá haver terra livre enquanto o fraco, o indefeso, a mulher não tiver seu espaço garantido na sociedade. Leha concluiu sua narração conclamando: Nós somos sua descendência!”.
A Sulamita nos convida a sermos “Eu sou uma muralha e meus seios são torres; aos olhos dele, porém, sou a mensageira da paz.” (Ct 8,10).
Com Dinah digo a vocês: “Sinto-me imensamente grata por vocês terem vindo. Vou deixar fluir tudo o que guardei em minha memoria para que todas se levantem desta mesa satisfeitas e revigoradas. Que seus olhos sejam abençoados. Que seus filhos e filhas abençoad@s. que seja abençoado o chão sob seus pés. Meu coração é uma concha repleta de água doce, transbordante.
Selah!”


                                                                           Tea Frigerio
   Missionaria de Maria - Xaveriana


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Liturgias e Oferendas



O Comitê Inter-religioso do Estado do Pará se reuniu em Sessão Solene na Câmera Municipal de Belém para debater sobre o Estado Laico, com o Tema: Tolerância não, Respeito! 
A Coordenadora do CEBI Pará Tea Frigerio falou sobre Liturgia, oferenda e ritos. Segue sua explanação abaixo:
Texto: Tea Frigério (Representando no Comitê a Religião Cristã)
Fotografias: Dilma Leão


Liturgias e Oferendas é o tema de minha comunicação a esta assembleia. Vou uni-las numa única expressão, num só conceito “RITO”, pois minha compreensão é que cada expressão religiosa em suas liturgias vive profundamente a mística que os ritos expressam.
A espiritualidade como busca de significado e sentido da vida que orienta a humanidade e define o ser humano tem mais de 70mil anos. A religião existe escassamente há 4500 anos.
As religiões clássicas: hinduísmo, judaísmo, budismo, cristianismo surgiram nas civilizações clássicas entre 3500 a.C. e 1500 anos d.C.
Nos últimos 20 anos há uma busca intensa de espiritualidade enquanto as religiões clássicas parecem se deteriorar. As religiões com suas formas, jogos e armadilhas às vezes se tornaram um obstáculo à busca de espiritualidade.
Carl Jung afirma que quando os símbolos decaem o inconsciente coletivo como vulcões erupção geram novos arquétipos, pois estes estão inscritos de modo indelével na consciência coletiva. Os valores arquétipos estão ligados ao:
- sagrado
- cosmos
- terra
- outros seres humanos em termos de sexualidade afetiva
- outros seres humanos em termos de companheirismo e cooperação.
A recuperação destes valores acontece, na maioria das vezes, fora das instituições religiosas, no limite da estrutura social. As pessoas encontram criativamente seus caminhos para recuperar o que está em perigo de ser perdido para sempre.
Acredito que as religiões não clássicas são expressão desta busca mística e espiritual, e seus ritos, suas oferendas, seus espaços sagrados, que as vezes nós consideramos não convencional, se insere neste caminho de relação do sagrado com o profano, do humano com o transcendente.
O universo todo se move em ritmos e ciclos: as estações mudam, nascem e morrem as galáxias, o nosso sentido de quem realmente somos evolui. Durante milhões de anos nossos antepassados estavam conscientes da vida e da morte como fluxo de vida continua. Entenderam a importância de marcar os ciclos da renovação (solstício e equinócios, por exemplo). Acreditavam que ao fazer isso, colaborariam com o cosmos a crescer e transformar-se.
Chamamos de ritos as nossas experiências com o sagrado: celebrações que podemos chamar de missa, culto ou liturgia. Os ritos pertencem a cada cultura. São eventos que cream vínculos profundos na comunidade que celebra. Para nós do comitê inter-religioso, o conceito de rito tem uma conotação ampla e responde a experiência de respeito, de ecumenismo e de convivência de pluralismo religioso.
No rito é fundamental é a vivencia de pessoas que buscam celebrar na diversidade suas experiências cotidianas a nível comunitário, publico e politico. Quando nos unimos para participar de um rito, estamos coletivamente revelando algo que para nós é muito importante: necessitamos expressar e celebrar os momentos significativos de nossas vidas, compartilhar estes momentos com outras pessoas.
Uma maneira de entender os ritos, em sua infinita variedade a partir das multiformes expressões e denominações religiosas, pode ser o vinculo entre a FÉ e AÇÂO. Um meio de unificar as crenças e os anseios profundos de uma comunidade através de um procedimento ordenado. Podemos expressar também assim: é  expressão de um grupo, comunidade, sua função é ‘recrear’ a sociedade ou a ordem social reafirmando e consolidando os sentimentos sobre qual se baseia a solidariedade social, e, portanto a ordem social.
Podemos assim apontar alguns elementos fundamentais que estão presente ao celebrar um rito:

·         Sentir-se parte da humanidade, da natureza que ao celebrar, ofertar, de uma forma ou outra se relaciona com a transcendência.
·         Encontrar-se com pessoas que partilham da mesma crença seguindo uma sequencia de ações e gestos que levará experimentar a comunhão em ações co-partecipativas.
·         Expressar de maneira oral, gestual, corporal sentimentos e emoções mobilizadas pelo ritual.
·         Comunicar-nos através de símbolos, oferendas, que dão sentido a ação ritual e que é a reinterpretação de significado e portadores de valores e anseios que renovam as relações com a realidade, o cotidiano, com a natureza com as outras pessoas.
·         Cada expressão religiosa interpreta e vivem estes elementos a partir de seus mitos fundante e por isso têm seus próprios ritos, seus próprios espaços religiosos e litúrgicos.
São estas reflexões que merecem ser aprofundadas e ampliadas, mas são suficiente para poder afirmar que é a partir disso que o Estado laico deve educar a população ao respeito a toda a expressão religiosa, a suas ritos e liturgias, deve garantir os espaços (lugares) onde cada religião possa realizar seus ritos, suas liturgias.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

TEOLOGIA E ECOLOGIA: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL?

Por Tea Frigério


A Ecologia, como ciência, sensibilidade, espiritualidade não surgiu nos âmbitos das igrejas, nem da reflexão teológica ou bíblica. Nasceu no meio da sociedade, fora das igrejas. Alias, elas mantinham uma visão antropocêntrica contraria ao cuidado da natureza. O próprio sistema patriarcal capitalista sempre pareceu se legitimar a partir de uma visão do mundo que se convencionou chamar de ‘cultura judeu-cristã’.
Euclides da Cunha nos alerta: “Realmente, a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis”.
E Fritjof Capra, em seu livro O Ponto de Mutação, afirma com palavras proféticas: “A nova visão da realidade… baseia-se na consciência do estado de inter-relações e interdependência essencial de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Esta nova visão transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais”.
O pensamento ecológico que nasce destes pensadores nos convida a pensar e viver a vida como uma rede de relações, rede que forma o ecossistema. Pensamento ecológico que é parte da elaboração de novos paradigmas de pensamento. Entre estes novos paradigmas está o da hermenêutica bíblica.
O pensamento ecológico tem desafiado a reler as primeiras páginas do nosso Texto Sagrado. Estamos cientes de que estas páginas, Gn 1 e 2, são releituras de mitos da criação dos povos entre os quais vivia o povo de Israel. Hoje, é patrimônio adquirido que os dois relatos são reflexão de fé a partir de contextos existenciais de lugares e épocas diferentes.
Nós cristãos reconhecemos, e disto precisamos pedir perdão, que estes textos, sobretudo Gn 1,26-28, foram lidos e interpretados para legitimar e construção de uma mitologia do poder, dominação e exploração indiscriminada sobre a natureza, na civilização ocidental.
Gn 1 e 2, embora escritos em épocas diferentes (VI e X séculos), chegam a nós um em continuidade do outro. Isto aponta a necessidade de uma leitura própria para cada texto, mas também a necessidade de perceber que um é o complemento do outro, um esclarece o outro. Então, se Gn 1,28 traz os verbos kabash = pisar na terra, subjugar, e radah = dominar, por sua vez, Gn 2,15 nos fala que o ser humano deve cultivar = ‘abad e guardar o solo = shamar. Cuidar, cultivar o solo para vida se multiplicar e ser fecunda é a vocação humana inscrita nestes textos.
Parafraseando Abraham Heschel, podemos dizer: “Não se pode construir outra imagem do Todo-poderoso além desta: nossa própria vida como representação de Sua vontade. Homem e mulher, criados à Sua imagem, devem imitar Sua misericórdia. Ele delegou à humanidade o poder de agir em Seu lugar. Somos seus representantes quando aliviamos o sofrimento e trazemos alegria.” O Todo-amoroso nos criou à Sua imagem e semelhança, para sermos no universo a continuação de Sua presença criadora e fecunda, para cultivar e cuidar da vida.
A aliança entre ecologia e teologia, para nós da América Latina deve necessariamente inspirar-se na Teologia da Libertação que nos indica duas utopias:

1ª A salvaguarda da Casa Comum.

A TL nasceu ouvindo o grito do oprimido, tornando-o sujeito da história e lugar a partir do qual entender melhor Deus como Deus na Vida, a missão de Jesus como promotor da Vida em abundância e as igrejas como sacramento de libertação integral.
Mas não grita somente o empobrecido, gritam as águas, as florestas, os animais, o ecossistema, a Terra. A Natureza e o Empobrecidos são vítimas da mesma lógica.
Como o encontro com o pobre nos permitiu uma experiência espiritual originaria, numa prática e numa reflexão libertadora. Da mesma forma o encontro com a natureza, a mãe terra, a questão ecológica nos proporcionará uma nova experiência do Sagrado, a da Divina Ruah o como comunemente falamos o Spiritus Creator.
A Carta da Terra diz: ‘Estamos diante de um momento critico da história da terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. A escolha é esta: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e cuidar um dos outros ou arriscar a nossa destruição e a devastação da diversidade da vida.’
Precisamos de um novo paradigma que estabeleça uma aliança de paz duradoura com a Terra, que estabeleça o shalom, ele vem sob o paradigma ecológico.  Ele exige um novo olhar sobre a natureza e que não existe ‘meio ambiente’, mas um ambiente inteiro, uma grande comunidade de vida, do qual nós somos membros uns dos outros. Exige superar a concepção que a Terra é inerte, um baú de recursos ilimitados, mas a convicção que a Terra é viva.

2ª A salvaguarda da unidade da Família Humana.


A utopia urgente é manter a unidade da Família Humana, habitando a mesma Casa Comum.
Precisamos dar corpo a esta utopia e resgatar os valores ligados a solidariedade e compaixão. A solidariedade e a compaixão permitiram aos nossos ancestrais passar da animalidade à humanidade. Ao saírem coletar alimentos, não comiam individualmente, como faziam os animais maiores. Antes reuniam os frutos e a caça, as levavam para o grupo de co-iguais e os repartiam entre todos. Dessa atitude nasceu a socialidade, a linguagem e a singularidade humana.
Podemos vislumbrar nisso o sonho de Deus, da Deusa: o Universo, Casa Comum para a Família Humana, para que todos os seres viventes, todas as formas de vida possam ter vida e vida em abundância.