quarta-feira, 12 de março de 2014

Serra Pelada ontem ... Serra Pelada hoje...


Piedade Amazônica, pintura de irmã Eleanor C. Llanes ICM

As manchetes da televisão anunciavam Serra Pelada, minissérie... Imagens começaram a passar na telinha da televisão e, as imagens da telinha foram desaparecendo substituídas pelas imagens de quando pisei pela primeira vez em Serra Pelada.
Foi quando? Foi lá nos anos entre 1990 - 1995, não lembro com precisão. Trabalhava na Equipe de Formação do Departamento de Pastoral do IPAR (Instituto de Pastoral Regional), veio um pedido da Diocese de Marabá: passar 3 semanas andando na região para formação bíblica nas comunidades. Aceitamos o desafio e, lá fomos nós... Na divisão das áreas a ser visitadas tocou-me Paraupebas, Carajas, Km 2, Serra Pelada. E assim começou minha itinerância nesta terra bendita por Deus pelas suas riquezas e amaldiçoada pelos homens pela sua ganancia.
Paraupebas, na planície, cidade dos trabalhadores, das domesticas; Carajas, montanha, mina de ferro ao céu aberto com sua estrutura social piramidal. Km 2, curva que guarda a memoria de um confronto de morte entre a força policial e lavradores. Itinerando nestas comunidades, absorvendo sua realidade cheia de contrastes. E num fim de semana me encontrei a caminho subindo a montanha com minha autorização para entrar em Serra Pelada. Fui acolhida pelo seu Abel que exercia a função de enfermeiro e animador da comunidade e um garimpeiro de barba e cabelo branco que infelizmente hoje não lembro o nome.
Sim em Serra Pelada havia uma pequena comunidade que tentava ser pequena lamparina em meio aquela realidade humana-desumana.
Escoltada pelos meus dois anfitriões de manhã fui percorrer a vila até chegarmos à cratera gerada pela mão humana em busca do metal precioso: ouro. Passam à minha frente imagens, imagens ... Homens que nem mais pareciam seres humanos... Formigueiro humano subindo e descendo dentro da cratera ... Formigueiro humano ferindo-se e ferindo a mãe terra ...
Umas poucas mulheres nas ruas, escuto ainda a voz do meu acompanhante dizendo: até pouco, mulher não entrava em Serra Pelada, somente liberava em algumas ocasiões... De reflexo, eu pensando em que ocasiões? Que mulheres ...?
A toda esquina, a toda hora surpresas. De tanto andar bateu a fome e fomos almoçar numa casa bonita, mesa farta, na conversa percebi que o dono de casa alugava um barranco, lá na cratera do ouro. Alugar um barranco, de quem alugava quem era o dono?
Os olhos enchendo-se de imagens, a mente fervilhando de informações.
E, a tarde num salão que também servia de capela, quando o padre ia para celebração, nos reunimos para o curso bíblico: sábado à tarde e domingo concluindo com a celebração da Palavra.
Sentada num banco olhava aqueles homens entrando, corpos curtidos pelo sol, chuva e vento, os ombros curvados, ainda que em repouso, pelo peso das sacas de terra, onde quem sabe havia um grama de ouro, mãos calejadas, feridas, rostos marcados pela desilusão, conservando nos olhos uma pequena centelha de esperança: talvez amanhã a descoberta, o filão.
Com eles abrimos o livro do Êxodo: sob o peso da escravidão ... em duros trabalhos ... capatazes ... gritaram sob o duro peso da escravidão ... Nunca estas palavras soram tão verdadeiras. Lemos e deixei ressoar estas palavras nos corpos, nos olhos, nos ouvidos das pessoas que me rodeavam, somente homens ... Nem precisou o seu Abel estimular suas falas ...
  •    O gato me convenceu a vir, ia ganhar muito dinheiro
  •    Não tenho coragem de voltar, pior de como sai, faz três anos
  •    Cavo e garimpo, mas tem quem me vigia, é o capataz pago pelo dono do barranco
  •    Quando intuímos que está perto um veio, ficamos também de noite para vigiar
  •    Mas ficamos com olhos abertos, com a mão na faca, na arma
  •    Há muita morte violenta aqui
  •    Naquele tempo só prostituta entrava
  •    E, mas ficavam somente uns dias e depois eram levadas, nunca as mesmas

São as palavras que voltam à minha mente. Nunca as palavras do livro do Êxodo pareceram tão atuais, tão verdadeiras. Faraó, capatazes, vigias, trabalhadores forçados. Capitalista, atravessador, quem aluga, capataz, gato, garimpeiro que cava, garimpeiro que carrega. A mesma pirâmide social se repetindo no tempo. Quem está no topo, quem lucra não tem rosto...
Hoje Serra Pelada é legalizada, mas a ferida na mãe terra está lá testemunhando a origem de sua escravidão, a origem da escravidão do ser humano que se tornou mercadoria porque o $$$ é o que move nossas relações.
Serra Pelada hoje tem outros nomes: Agronegócio, pecuarista, mineração, madeireiros, usinas de Tucuruí, Belo Monte ... Nomes que nos desafiam a levantar o tapete do silenciamento para termos a coragem de olhar de cara o que estas palavras-realidade provocam: migrações voluntarias e involuntárias, exploração do trabalho mal pago e em situações indignas, trabalho escravo e em servidão no latifúndio, empobrecimento que gera situações favoráveis ao trafico de pessoas ... Pessoa humana que vira mercadoria.
Serra Pelada nos convida a levantar o tapete para termos a coragem de olhar de cara o que significa Trafico de Pessoa Humana.
Serra Pelada nos convida a escutar as vozes que gemem sob o peso da escravidão e clamam... do fundo da escravidão, o seu clamor chegou até Deus ... É para liberdade que Cristo vos libertou (Ex 2,23-25; Gl 5,1).


Tea Frigerio
Missionaria de Maria - Xaveriana 

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